quarta-feira, março 02, 2005
O Barão de Munchausen, em um de seus contos, descreve um reino muito estranho e distante, em algum lugar entre a Pérsia e Samarcanda, há muitas e muitas léguas daqui. O Reino de Hanthrais, como ficou conhecido, existiu antes do tempo da Dinastia Mogul, da chegada do povo rupee ao pequeno vale entre as montanhas da Ásia Central até o desaparecimento de sua curiosa civilização, com a tomada do lugar pelos emissários do príncipe Shah Jehan da Índia. Dizia o Barão que o famoso viajante veneziano Marco Polo visitou Hanthrais, fato que é bastante contestado pelos estudiosos e aficionados pelos relatos de viagem do mais ilustre filho da Sereníssima República, por não constar em praticamente nenhuma coletânea sobre os anos da jornada do italiano a Catai e a outras terras distantes. Como as estórias que o Barão contava sobre Hanthrais eram em grande parte baseadas nos tais relatos apócrifos de Polo, não temos muito como comprovar a veracidade dos fatos, senão pela nobilíssima palavra daquele que tantos contos fantásticos já nos trouxe.Como dito, Hanthrais era habitado pelos rupees, um povo da família indo-européia, provavelmente originário da região entre Calicute e o Ceilão muitos anos antes de Cristo. Antes de se estabelecerem no pequeno vale de Hanthrais, os rupees eram semi-nômades, vivendo normalmente nas capitais dos grandes impérios da região e atuando como conselheiros dos nobres e reis devido à sua notória capacidade administrativa e prática. Ótimos conselheiros eram os rupees, tanto que os mais distintos vizires eram quase sempre desta etnia. Após gerações e gerações de serviços prestados a tantos monarcas de tantas dinastias e povos distintos, os rupees foram finalmente recompensados com seu próprio reino - administrariam um vale entre as montanhas, que era grande demais para ser uma província, mas pequeno e desimportante demais para ser um reino dado a um dos parentes diretos de qual fosse o império que estivesse clamando sua posse e tributos. Sair da vida semi-nômade era um grande desafio para eles, e quando o primeiro Pachá rupee chegou ao vale, havia a percepção geral de que o povo rupee floresceria e faria daquelas paragens um grande reino, senão seu próprio Império. Ledo engano. Parece mesmo que a chegada ao vale e a transição de uma vida sedentária foi o início do fim para os rupees - ou pelo menos, significaria uma mudança muito grande em seus hábitos, de modo a quase descaracterizá-los por completo. Obviamente, da época da chegada dos rupees, as planícies verdejantes de Hanthrais já eram habitadas por um povo, que de tão descivilizado e aborícola não sabia nem ao menos denominar-se. Eram camponeses e pagavam tributo aos nobres rupees. Era um povo sujo e ignorante, de mentalidade servil e sem virtudes morais. Os nobres rupees não tinham muita paciência com eles, mas não lhes dedicavam muita atenção. Deixavam-lhes subexistir em suas terras, desde que não causassem muitos problemas. Alguns desses aborícolas, escolhidos entre os menos ignorantes - e dizia o Barão que mesmo um inteligentíssimo aborícola de Hanthrais seria bastante ignorante a nossos olhos - trabalhavam como criados nas residências rupees, em semi-escravidão. O mais curioso sobre os rupees é que, ao chegar ao vale, desenvolveram uma série de hábitos novos, muito diferentes dos que tinham quando viviam nas cortes reais e nas grandes capitais dos reinos que outrora aconselhavam. Não se sabe o que motivou tal mudança de comportamento: talvez, segundo as más línguas, pela convivência mesmo que limitada com os ignóbeis aborícolas. Mais provavelmente, segundo o Barão, tenha sido o fato de que aconselhar reis era mais fácil para os rupees do que administrar problemas diretamente, e lidar com a execução de suas decisões. Como dizia um sábio chinês de Madureirashan, "falar é fácil, difícil é fazer". Um exemplo claro dessa mudança de hábitos era o talento ímpar que os rupees adquiriram para guardar e armazenar coisas, fossem boas ou ruins, de forma quase sempre inútil, o que rendeu a Hanthrais ser conhecido na região como o reino "onde tudo entra, mas pouco sai". As casas por vezes pareciam grandes depósitos empoeirados, que podiam ter coisas tão diversas quanto um bazar turco, de penas de avestruz e sacos de cereal, empilhados sem muita ordem ou critério. As ruas eram decoradas todos os anos, mas de forma a nunca jogar fora a decoração do ano anterior (um desperdício, segundo os rupees) e o resultado era quase sempre uma mistura de cores novas e desbotadas de extremo mau gosto. Até as roupas dos nobres rupees eram feitas de tecidos reaproveitados quase que à exaustão. O fato é que em Hanthrais quase não havia lixeiras. Os rupees se tornaram um tanto quanto radicais com relação ao desperdício, e evitavam jogar algo fora a não ser que fosse realmente necessário. Ademais, havia a crença mítica e ancestral entre os rupees que as lixeiras eram alvo de maus espíritos, que chegavam para revirá-las e espalhar a sujeira naqueles que jogassem algo fora sem necessidade. Crendice ou não, o fato é que de vez em quando algumas lixeiras apareciam reviradas sem muita explicação, o que deixava os sacerdotes e líderes rupees extremamente zangados. Aliás, pouco tirava mais a paciência dos rupees de alta classe do que ver uma lixeira revirada por um mau espírito. Outra crendice não muito bem explicada era o costume de deixar todas as portas bem fechadas, e quase sempre trancadas. Em Hanthrais era raríssimo encontrar uma porta aberta, e mesmo em dias muito quentes todas as portas e janelas eram mantidas fechadas, o que causava desconforto, mas tolerado em nome da crença. Esse hábito em particular eram muito estranho a visitantes de outros povos a Hanthrais: fechar a porta sempre que entravam ou saíam de um cômodo fazia com que os visitantes quase nunca se sentissem bem-vindos aos lares rupees, dando a impressão que os anfitriões estavam restringindo sua movimentação ou mesmo escondendo algo de seus hóspedes. Os rupees também tinham animais de estimação muito curiosos: uma espécie de babuíno-anão, bastante peludo, aos quais dedicavam boa parte de sua atenção. Na verdade a dedicação dos rupees a seus "monstrinhos" era motivo de piada entre outros povos, que diziam que eles mandavam mais no reino do que os próprios rupees. De fato, muito da atenção do reino era dispensada a esses temperamentais animais, que podiam ser ao mesmo tempo tão amáveis quanto perigosos. A intensa convivência com os bichos era um alento para as atribuladas rotinas dos rupees, mas também poderiam ser um grande estorvo. Mas pouco se comparava em excentricidade do que os hábitos alimentares dos rupees. A terra do vale de Hanthrais não era muito fértil e as técnicas de cultivo dos ignóbeis camponeses aborícolas eram arcaicas, o que resultava em colheitas cada vez piores para uma população cada vez mais faminta. Por conseguinte, os rupees tinham uma alimentação nada saudável: comiam tudo o que podiam, sem nunca desperdiçar nada - mais uma vez, a crença radical contra o desperdício - e comiam alimentos mesmo próximos à decomposição. Algumas vezes, por radicalismo, chegavam inclusive a comer alimentos já em decomposição e catados das poucas lixeiras, decerto por influência nefasta dos ignorantes aborícolas, mas felizmente isso não era um hábito corrente. Comiam quase sempre as mesmas coisas: pão torrado (para durar mais tempo), leite com água (o que dava a ilusão de multiplicar o leite) e massas de péssima qualidade. Porém, estranhamente, aqueles descontentes que importavam alimentos de outros reinos a fim de comer melhor eram vistos com maus olhos por seus patrícios. Comer bem, na visão de alguns, era uma forma branda de desperdício, que devia ser combatida. Marco Polo chegou a descrever que os biscoitos de Hanthrais eram "feitos com sabor ruim propositalmente, para que os rupees não o comessem ao menos que estivessem com muita fome". Esse tipo de biscoito é mencionado em escritos de outros reinos como uma prova da estupidez das crenças Hanthraisianas, e certa feita um sábio turcomeno mencionou que "se nós somos aquilo que comemos, os rupees estão pouco a pouco perdendo sua virtude e tornando-se tão podre quanto a comida que se servem" Profético ou não, o fato é que os rupees viram toda sua virtude de grandes administradores e conselheiros desvanecer-se geração após geração. Vez por outra um filho de Hanthrais lograva chegar a Vizir de um reino próximo importante, mas com a falência do sistema educacional hantraisiano, isso era cada vez mais raro. Isso se dava porque, contrariando a prerrogativa socrática, os rupees começaram a deixar de estudar assim que tinham filhos, por julgar que já sabiam o bastante. Hábito engraçado, pois exigiam de seus jovens que estudassem muito, sem preocupar-se em criar uma cultura acadêmica ou mesmo dar o exemplo e aperfeiçoar-se continuamente. Uma vez sábios respeitados, o povo rupee tornou-se inculto - não ignorante omo os aborícolas nativos, mas ainda sim incultos - por um misto de soberba e preguiça de suas gerações mais velhas. Quando os sábios rupees - quase todos já no exterior - perceberam o declínio de sua cultura e a deseducação de suas gerações mais novas, já era tarde demais. As colheitas, cada vez mais pobres e escassas, faziam com que a população apertasse um buraco a mais nos cintos a cada inverno, a ponto de não haver mais excedente para investir em educação. Sem comida e sem cultura, Hanthrais minguou lentamente. Até os aborícolas, cansados de trabalhar uma terra quase estéril, migraram em massa para outras terras, deixando os rupees como únicos habitantes do vale. Os rupees, por sua vez, acostumaram-se com a escassez, acomodaram-se, e aproveitaram-se da falta de importância estratégica do vale de Hanthrais para viver por gerações na mediocridade. Reza a lenda - mais do que apócrifa, diga-se de passagem - que foi assim até que um certo Vizir rupee chamado Baz Deva Raam, conselheiro do príncipe Shah Jehan da Índia, decidiu pôr fim aos anos de pobreza de Hanthrais. Não se sabe muito sobre ele, apenas que era um inimigo mordaz do modo de vida dos rupees de Hanthrais, e que queria que seu povo retornasse às tradições gloriosas que fizeram de seus talentos administrativos e intelectuais uma lenda entre os povos da Ásia. As tropas lideradas pelos emissários de Raam quase não encontraram resistência - pelo contrário, foram até saudados por alguns famintos hanthraisianos, que preferiam a mudança à inércia, fosse para bem ou para o mal. Raam foi tirânico com seus inimigos: além de proibir os costumes que tanto odiava, confiscou bens, transformou o vale em domínio direto do príncipe e, o que foi mais grave, separou todos os pais de seus filhos, obrigando os jovens a estudar nas mais diversas cortes asiáticas. Alguns velhos rupees, descontentes, foram degredados para terras distantes, para o Deserto de Gobi ou mesmo executados a sangue frio, longe das vistas de seus filhos e netos. Alguns poucos anos depois, o resultado: o verde já dominava de novo o vale, as colheitas, com a introdução de moderníssimos métodos, dava resultados cada vez melhores, e os poucos jovens retornados das cortes fizeram do vale um importante entreposto de comércio. O Reino de Hanthrais acabou, para a grande felicidade do povo rupee, que passou a viver de novo em fartura e abundância entre povos mais poderosos, como burocratas, diplomatas e comerciantes de especiarias e artigos de luxo, até a chegada dos britânicos ao sul da Ásia. Desde então, disse o Barão, nunca mais houve notícia deste magnífico povo e de suas lendas. * * * RAFA @ 05:59 tic-tac-tic-tac
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mirror, mirror
na vitrola
bio Brasileiro da gema, viajante do mundo por natureza. Sagitariano cuspido e escarrado, com ascendente em Aquário, seja lá o que isso for. Odeia sopas e caldos mais do que tudo no mundo, seguido de perto por cinismo. Nascido na Ilha do Leite, na cidade do Recife, criado na Urca e em muitos quartéis Brasil afora, foi enrolado por sua mãe na bandeira do Sport quando nasceu, mas ama mesmo é o glorioso Botafogo de Futebol e Regatas. Afinal, amor que é amor tem que doer, e torcer pra time que só ganha é chato demais. Gosta de sentir a brisa da praia no rosto, do bobó de camarão de Dona Susana, e de frutos do mar em geral. Seus tempos de Colégio Militar no Rio o fizeram um cavalariano orgulhoso, mas um péssimo cavaleiro: ainda hoje insiste em querer montar pelo lado direito. Indie desde pequeninho, é mestre em gostar de bandas que ninguém nunca ouviu falar. Em razão do seu amor pelo róquenrou, tenta sem sucesso tocar instrumentos de cordas - violão, baixo, guitarra - mas sua incompetência não o deixa passar do meia-boca. Moço com grandes dotes culinários (só não morreu de inanição ainda por sua criatividade na cozinha), amante da boa-mesa - e de "forks" in the table - já até sentiu o sabor das nuvens. Com oito anos decidiu ser piloto de caça depois de ter visto Top Gun no cinema - desistiu aos 16 quando se deu conta que a Marinha não tinha caças e que milico ganha mal que só a porra. Hoje, graduado em Relações Internacionais pela UnB e mestrando em Comunicação na mesma, estuda para passar no Rio Branco, só porque gostou do cafezinho da Embaixada em Londres. Viciado em chocolate por falta crônica de sexo, vive dizendo que um alfajor de chocolate Havanna é quase tão bom quanto uma noitada com a Luana Piovani ou com a Jennifer Connoly. Eco-chato assumido, descobriu-se idealista depois de velho - dizem as más línguas que foi depois de ter finalmente entendido Kant, aquele mesmo que ele próprio passou a vida inteira malhando. Reza a lenda que seu idealismo é tão agudo que nunca vai deixar de acreditar em Papai Noel e na ONU. É um dos maiores acadêmicos de seu tempo, com 1,90m de altura, por isso mesmo preferindo as altas: "baixinha dá uma puta dor nas costas" reclama. Don Juan totalmente às avessas, "bigode" assumido, não tem muita afeição por gatos, a marxistas e a torcedores do Flamengo. Recebeu orgulhamente o diploma de cidadão honorário de Entre-Ijuís/RS, e já vislumbra o Nobel da Paz. Toma chimarrão regularmente, para curar bebedeira e manter a tradição. Sangue O positivo com muita testosterona, sofre de insônia, alergia a pó e falta de simancol. Escreve esse blog porque adora fazer uma graça - só não percebeu que a maior graça na vida dele é ser ele próprio.
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sharp cuca about this blog *idiossincrasia (id). [Do grego idiossynkrasía: ídios, próprio + sykrasis, constituição, temperamento] S. f. 1. Disposição do temperamento do indivíduo, que o faz reagir de maneira muito pessoal à ação dos agentes externos. 2. Maneira de ver, sentir, reagir, própria de cada pessoa. 3. Med. Sensibilidade anormal, peculiar a um indivíduo, a uma droga, proteína ou outro agente.Porque "Raridades & Idiossincrasias"? Não sei bem ao certo. Achei um título legal when it came out. Um título quase conceitual, eu diria. Sobre as "idiossincrasias", eu uso essa palavra sempre, mesmo soando meio intelectualóide demais pro meu gosto. No entanto, eu normalmente a uso com um sentido um pouco diferente do restrito léxico dos dicionários. Pra mim, essa "maneira de ver, sentir, reagir" se percebe nas menores coisas, aquele tipo de detalhe inerente à sua personalidade que nem mesmo as pessoas que melhor te conhecem poderiam notar. Aquelas pequenas manias, tipo Amélie Poulain, como fazer pedrinhas ricochetearem no canal ou enfiar a m?o num saco de tremoço (aliás, enfiar a mão num saco de qualquer cereal é fantástico!). Detalhes pequenos, mas muito importantes. Vitais! Essa é a idéia. Registrar estas pequenas raridades do dia-a-dia. Ou também as raridades que parecem grandes, mas que no final são igualmente pequenas. Isso faz parte do meu esforço de perceber a realidade ao redor com olhos mais clínicos, para poder enxergar a beleza dessas coisas. A manteiga derretendo no pãozinho quente, o cheiro fresco de grama molhada de chuva, essas coisas... Enjoy the experience! no baú
setembro 2004 Raridades v.1: out'02 a fev'03
Raridades v.2: out'03 a fev'04
Raridades v.3: mai'04 a set'04 - fora do ar devido aos idiotas da Globo.com
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