:: Raridades ::
quarta-feira, maio 18, 2005

Acho que estou vivendo uma fase ótima e descobertas e investigações no campo intelectual. Tenho lido como nunca, e sobre tópicos tão diferentes como Deísmo e Teleologia até a História dos Habsburgos austríacos. O engraçado disso tudo é que não há o menor método pra isso tudo, é tudo absolutamente rizomático, hiperlinkado, uma coisa me leva a outra, que me leva a outra totalmente diferente. Um estado de curiosidade semi-consciente que me leva para lugares esquisitos, mas que é exata e inexplicavelmente aonde quero estar.

Numa dessas curiosidades aleatórias, vi como uma amiga (né Dea?) escreveu sobre Nêmesis um outro dia no seu blog. É um conceito/arquétipo que me acompanha desde muito tempo, e que foi uma grande descoberta quando comecei a fazer Direito, back in '97. Algo que sinto que tem muito a ver comigo e com minha percepção de ser. Idiossincrático mesmo.

O sentido comum e literário para a palavra nemesis, ou pelo menos para autores não muito informados em antigüidade clássica, é de um inimigo que não pode ser vencido pelo protagonista da estória. Mas esse sentido não me interessa muito. O importante é que, na mitologia grega, Nêmesis é a deusa da retribuição divina, da vingança do destino, das tragédias que acontecem àqueles que as merecem. Nêmesis é uma deusa que ama os mortais, mas que não sente remorso das tragédias que causa, porque sempre as causa para aqueles que a merecem, como forma de equilíbrio universal.

lady_justice
Ela é representada como uma bela mulher - em semelhança a Afrodite, mas de porte atlético - com uma arma e um aparato de agrimensura (modernamente, uma espada e uma balança). É a executora da Justiça, e principalmente, aquela que equilibra as graças que a deusa Fortuna distribui sem ver a quem. Simplificando, ela é o oposto da sorte, portanto. Os mortais que usam as graças da Fortuna de bom modo, e que não causam mal a outrem, escapam do fio de sua lâmina. Em textos gregos antigos ela é frequentemente chamada de Adrasteia, que quer dizer "aquela a quem ninguém escapa", ou mesmo pelo epíteto Erinys, "a implacável". É uma personagem sempre presente nas tragédias de Sófocles, sempre como a força sobrenatural que restaura o equilíbrio na proporção certa, e que não deixa que as perversões dos imperfeitos mortais alterem os pesos da balança cósmica por muito tempo.

Me fascina o quanto esse arquétipo está presente no inconsciente coletivo de quase todas as civilizações humanas. O Deus dos hebreus é exatamente assim, uma força para ser amada por sua graça, mas também para ser respeitada e temida por sua fúria impiedosa com aqueles que ousam trair seus desígnios. É a ele, não a Nêmesis, que as pessoas invocam quando se sentem injustiçadas pelo destino. Interessante com as idéias de Deus e Justiça se intercalam.

Justiça. Percebi uma vez, vendo programas policiais, que é isso o que parentes de vítimas de assassinato sempre pedem a Deus. Não o conforto, tampouco a vingança barbárica de Talião. Pedem tão somente o justo, e pedem ao sobrenatural, porque sabem que as sociedades humanas, por mais que se aproximem, não lograrão fazê-lo de forma absoluta e incontestável.

Camus
Acho interessante também como Camus aponta em sua principal obra filosófica, O homem revoltado, como o sentimento de injustiça é a principal força impulsionadora das revoluções e dos grandes câmbios de força ao longo da História. Em última análise, a injustiça é o que move a raiva e a insatisfação com a própria existência. Para o mestre, que pelo menos em minha parca memória não cita Nêmesis nenhuma vez em nenhuma das obras que eu tenha lido, esse arquétipo parece estar sempre lá, bastante presente. Parece que é o fundamento pelo que se explica a propriedade e a justiça da revolta do Homem. E inclusive ressalva: o Homem é tão imperfeito que, uma vez que estabelece sua revolução, torna-se cada vez mais tirânico, pois a utopia do princípio que a motivou acaba por justificar a tudo - o que pede, mais uma vez, pela intervenção de Nêmesis, numa dialética sem fim que agradaria a qualquer hegeliano.

Tenho pensado muito nisso ultimamente. Ainda não cheguei a nenhuma conclusão, e nem acho que vá chegar em algum ponto da minha vida. Acho essa questão verdadeiramente incompreensível pela razão e pela ciência. Mas persegui-la pode explicar-me o quanto eu mesmo valorizo o que é certo, ético e justo em minha vida, e como devo agir para dar o tratamento apropriado para cada um dos que me cercam. Afinal, se somos desiguais, temos que ser tratados desigualmente... mas, como no velho comercial de Carlton, sempre "com alguma coisa em comum". Sem dois pesos e duas medidas.

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RAFA @ 23:41 tic-tac-tic-tac