:: Raridades ::
quinta-feira, dezembro 29, 2005

Recife

O Recife acordou, deu bom dia e encontrou
todo o povo nas ruas, nas pontes, nas praças, se amando
se encontrando com alegria num eterno gingado
de frevo, ciranda e baião
batida de côco, maracujá e limão
vem vem vem fazer parte desse cordão
Recife tem um lugar pra você dentro do coração

* * *

Ok, a cidade não está mais onde a deixei, dois anos atrás. A pintura da Torre Malakoff não foi retocada, e o movimento da Rua do Bom Jesus no Recife Antigo caiu bastante. Os problemas de violência e de limpeza urbana parecem ter se agravado, mas o que mais me chocou mesmo foi a falta de modos "média" das pessoas, uma mistura de frenesi bárbaro à la hormônios de sétima série com um estado de alerta permanente. Isso faz com que o ruído ambiente dos bares seja insuportavelmente alto pra mim, um neocandango já acostumado com a apatia (?) civilizada da Corte. Fui ao shopping Recife esses dias de madrugada, num desses rallys de vendas de fim-de-ano, e fiquei embasbacado com a gritaria das pessoas na praça de alimentação - aquelas gritarias flash que rolam na sétima série, quando alguém faz merda ou deixa alguma coisa cair, whatever - com o único intuito de humilhar quem saiu do compasso, ou só fazer barulho por fazer mesmo. Me senti o próprio sueco pensando "tsc tsc tsc"...

Mas what the fuck, Recife continua do caralho. O marzão tá até mais convidativo, a praia tá ótima - se bem que ando guardando minhas horas de sol para um certo paraíso chamado Maragogi, no ano-novo. Acho lindo o balançar dos coqueiros e os casarões antigos da cidade. O bairro da Casa Forte ainda consegue me fazer sentir em casa mesmo depois de tanto tempo fora, acolhido que nem deitar no cobertor quentinho pra ver TV. Mas acima de tudo, as pessoas. Apesar dos modos um tanto bárbaros e dos espíritos estarem sempre mais armados do que o recomendado para a felicidade, aqui o povo é genuinamente bem-humorado e feliz. Não tem um só dia que eu não tenha uma situação ótima que ateste e corrobore isso. É nessas horas que me sinto recifense: nas tiradas nada sofisticadas, toscas mesmo, mas que te fazem mandar à putaqueopariu toda a frescura intelectualóide de ter um senso de humor sarcástico e/ou negro. Isso não combina muito bem com os trópicos, acho.

Algumas coisas insistiram em conspirar contra. Não gostei do apartamento dos Aflitos, pelas razões óbvias e pelas não tão óbvias também, mas meus pais já devem estar morando num maior e melhor, na beira-mar de Boa Viagem, quando eu voltar para o Carnaval. Achei os guaiamuns pequenos demais, mas parece que é fruto de uma praga. Umas almas defuntas por vezes me atormentam, já me acostumei a ignorar as pontadas, pero todavia tengo la camisa negra. Fiquei meio triste ao ver que meu avô anda com a audição tão prejudicada que já não entende o que nós falamos, mesmo com as ajudas tecnológicas - parece uma prisão do ser, coisa sartreana mesmo, me dá uma puta agonia só de ver. É, os 91 anos do velho Severino Paulino e a ausência da véia Iracema começam a pesar, mas rezo para que essa reta final da vida dele transcorra serena e sem maiores percalços. Não consegui encontrar todos os amigos que queria, as pessoas parecem estar meio inacessíveis, e com essa coisa de incompatibilidade de agendas acabo aproveitando mal o tempo tentando conciliar tudo. Not my fault. Mas tenho aproveitado bem o tempo pra conversar mais com minha mãe e curtir a rotina de casa. São só dez dias, mas o aproveitamento do tempo não está ruim. Dá pra fazer tudo e conectar no MSN.

Coisas a favor, muitas: primeiro, meu pai. A cara dele está bem melhor, me parece com a alma mais leve, em um palavra, desestressado. Ele me parece bem mais feliz aqui do que em Brasília. O Arthur também parece estar progredindo bem, slow and steady. Outra coisa boa: dirigir numa cidade com ruas desordenadas e trânsito louco me faz sentir muito vivo, e apesar de conhecer bem a estrutura da cidade, sempre me sinto desafiado por lugares e endereços novos. Ou seja: sou sempre rookie no trânsito daqui. O cheiro de maresia e o fedor do mangue são inexplicavelmente ótimos. Sem falar que, por conta da aparente má fase do clã das Rodrigonas, tenho me sentido meio Vilela, a ala excêntrica e xiita com assuntos de saúde. Vai entender...

* * *

Sou o coração do folclore nordestino
Eu sou Mateus e Bastião do Boi Bumbá
Sou o boneco de Mestre Vitalino
Dançando uma ciranda em Itamaracá
Eu sou um verso de Carlos Pena Filho
Num frevo de Capiba
Ao som da orquestra armorial
Sou Capibaribe
Num livro de João Cabral

Sou mamulengo de São Bento do Una
Vindo no baque solto de Maracatu
Eu sou um auto de Ariano Suassuna
No meio da Feira de Caruaru
Sou Frei Caneca do Pastoril do Faceta
Levando a flor da lira
Pra Nova Jerusalém
Sou Luis Gonzaga
E vou dando cheiro em meu bem

Eu sou mameluco, sou de Casa Forte
Sou de Pernambuco, eu sou o Leão do Norte

Sou Macambira de Joaquim Cardoso
Banda de Pife no meio do canavial
Na noite dos tambores silenciosos
Sou a calunga revelando o Carnaval
Sou a folia que desce lá de Olinda
O homem da meia-noite puxando esse cordão
Sou jangadeiro na festa de Jaboatão

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RAFA @ 02:43 tic-tac-tic-tac