:: Raridades ::
sexta-feira, janeiro 19, 2007

Arbeit macht frei

Essa semana estou emprestado ao Gabinete da Presidência da Enap. Portanto, ralando bem mais que de costume. Ainda não é aquela coisa de tirar o couro, mas tá dando pra cansar bem no fim do dia. Ao menos a tarefa está bem interessante, assim como o grau de responsabilidade implicado nela, o que é bom, afinal estão confiando em mim. Também comecei um cursinho de revisão pro Rio Branco às noites, apesar de ele ainda não ter mostrado a que veio.

De qualquer forma, acho que há um bom tempo não fico tão atolado de coisas pra fazer, e percebo isso pela falta de intervalos durante o dia. É uma coisa atrás da outra, pequenos problemas, textos a fazer e a revisar, telefonemas, e-mails e documentos a todo momento, e haja café para segurar a atenção. Não é ruim na medida em que não dá tempo de alimentar as nóias, a confusão mental e a falta de bússola que me aflige, mas não posso dizer que é bom também. Essa rotina de ratinho de laboratório do Pavlov é especialmente cruel ao corpo, chego em casa louco pra dormir e acordo no meio da noite em vigília e com fome.



Dediquei os raros momentos de reflexão dos últimos dias para perceber como vivem essas pessoas que têm rotinas pesadas de trabalho. Em todo escritório existe uma pessoa assim, que topa o sacerdócio de carregar o piano, dez ou doze horas por dia, every single day, any given weekend. É bonito de ver essa dedicação, essa amor pela ralação e pelo ofício, mas também vejo que isso sacrifica não apenas a quem topa ir pro moedor de carne da rotina dos realizadores. No final, não é bom pra ninguém.

Vejam bem, no final perdem todos: o dedicado, que perde sua saúde, o convívio com a família, as horas de sono, o tempo livre de ser feliz, em prol dessa mais-valia - e olha eu aqui citando Marx. Perde o mercado, porque quem trabalha demais consome de menos. Perdem as instituições, que veem sua competência difusa ser diminuída pela concentração de trabalho em poucos. Perdem até os incompetentes, que por falta de habilidade ou de vergonha na cara já não conseguem contribuir muito, conseguem manter-se nas vidinhas medíocres se escorando naqueles que trabalham de verdade.

Aí leio uma entrevista da Gisele Bündchen na Folha Online falando sobre sua weltanschauung, sua visão de mundo. Destila a musa: "Hoje parece que as pessoas querem saber mais sobre quem namorou, casou ou divorciou do que das coisas que acontecem no mundo. É ridículo. Você sabe por que isso acontece? É porque 90% das pessoas estão vivendo como zumbis. Elas têm medo de olhar para dentro delas mesmas. Preferem viver a vida das outras pessoas, e não as suas vidas. Elas não estão despertas para o mundo, para as suas vidas. São como zumbis."

Do alto de seu mais puro senso-comum, Gisele está certa. A grande maioria das pessoas não tem o talento ou a sorte de estar em um ofício em que elas possam ser Marisas Monte, Pelés ou Einsteins. Portanto, têm que ralar muito to make a dough. E por isso, deixam de viver. Os gregos já sabiam disso há três mil anos: viver, ou "despertar para o mundo" como disse a übermodel, requer uma boa dose de ócio. Não o ócio completo daqueles que gozam de permanent vacations, mas momentos de contemplação inútil e não-utilitária. Os baianos e o Domenico de Masi talvez levem isso a extremos, mas é isso aí.

O ponto é que poucos de nós podem dar-se o luxo de viver com todas as cinco letras, o que nos leva a constatar que a vida, para a grande maioria das pessoas é um grande exercício de mediocridade existencial. Talvez não os 90% que nossa musa contabilizou, mas decerto o grosso das seis bilhões de almas desse planeta. E o pior é que, como o escritório que mencionei em cima, acaba não sendo bom pra ninguém, nem para os que vivem na mediocridade, nem para os que não vivem. Essas pequenas crueldades acabam se banalizando, ficando comuns demais. E aí é que os questionamentos de Camus aparecem: porque não acabar com essa merda de uma vez? Responde o mestre: viver é foda, viver é difícil, mas viver é uma necessidade.

O Luiz Mendes escreveu um ótimo artigo na Trip sobre justamente sobre isso. Chatterton suicidou, Kurt Cobain suicidou, Nietzsche enlouqueceu e nós não vamos nada bem. E não é pra culpar o capitalismo, a globalização ou o imperialismo americano, o fato é que esse sistema em que vivemos alimenta as pequenas crueldades que deixam o mundo insuportavelmente feio. Diz ele: "Precisamos levantar para trabalhar no dia seguinte, e no outro também. Incertos do que somos, embora seguros de que não podemos ser diferentes de nós mesmos, buscamos marcar posição aproximada ao nosso centro, para nos manter flutuando". É verdade. E acrescento: se somos capazes de nos manter flutuando, é porque ainda podemos sentir. A crueldade é infinita, mas nunca superará nossa capacidade de perceber a beleza.

Enquanto isso, vamos vivendo, one day at a time. Hemingway - aquele gênio que também suicidou - dizia que o mundo é um lugar lindo, e que vale a pena lutar por ele. Eu e muita gente boa seguimos acreditando, mas somente na segunda parte da frase.

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Viram porque eu passei tanto tempo sem escrever? Rotinas apertadas fazem as semanas passarem muito rápido. Quase não acreditei quando vi que já fazia uma semana que eu não postava. Passou voando mesmo.

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RAFA @ 16:16 tic-tac-tic-tac