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sexta-feira, janeiro 26, 2007

O avesso do avesso do avesso

Gosto muito do Caetano Veloso. Acho até que ele foi bem mais importante do que o Chico Buarque - que pra mim é o compositor mais overrated do Brasil - justamente pela mistura de ritmos bem autenticamente brasileira e pela precisão lírica que ele desenvolveu. Parece que o Caetano nos transporta para sua visão poética assim, seamlessly, sem ruído. É por isso que gosto tanto de London London. E é por isso que Sampa define tão bem a nossa metrópole.

São Paulo fez 453 anos. Pra mim esse número é meio agourento, lembra-me da Queda de Constantinopla, em 1453. Como se sabe, a cidade foi tomada depois que Mehmed II ordenou o enfraquecimento das muralhas da cidade pela construção de túneis embaixo delas. O peso das muralhas sobre os buraco abaixo fazia-as ceder. Um pouco como o que aconteceu nas obras do metrô.

Toda essa abstração é para dizer que gosto de São Paulo, mas só pra passar uma semana. O excesso de concreto e de gente me oprime demais, esse mar de pedras, sei lá, eu e Sampa não combinamos muito. Mas gosto da agitação metropolitana, dos meus amigos paulistanos, das baladinhas - apesar de as achar meio caras - enfim, da diversidade intrínseca a uma aglomeração de quinze milhões de pessoas.

Assim como Brasília, São Paulo precisa se reinventar. Precisa encarar seus fantasmas e seu lado mais escuro, ou será engolida por eles numa enorme cratera. Reproduzo abaixo um texto do Josias de Souza que trata exatamente dessa necessidade. Achei interessante o estilo de frases curtas sem pausa, parece o próprio ritmo da cidade, sem espaço pra respirar na leitura. Aos leitores, have fun, e aos amigos paulistanos, parabéns por sobreviverem.



"Aos 453 anos, São Paulo não é mais cidade. Virou entidade. A anciã é precedida pela fama. São Paulo é desregrada. Dorme tão tarde e acorda tão cedo que convive com a ilusão de que não pára. São Paulo é soturna. Tem ojeriza a cores vivas. Veste cinza. São Paulo é imprudente. Adora roleta-russa. Às vezes estoura os próprios miolos. Elege o Maluf, o Clodovil... São Paulo é hesitante. Ama o feio e o caótico. É correspondida por ambos. E, enquanto não se decide, deita-se com os dois. São Paulo é medrosa. Prefere passear no shopping, uma cidade onde a cidade não entra. Uma cidade sem os problemas da cidade. E com seguranças na porta. São Paulo é contraditória. Mora na fartura. Mas seus janelões quatrocentões dão vista para a miséria. São Paulo é resignada. Não reage a coisa nenhuma. Quando atacada pelo PCC, corre pra casa. No fundo, no fundo receia gritar por socorro. Pode aparecer a polícia. São Paulo é o elogio do capitalismo à brasileira. Dentro do Mercedes, vidro levantado, metida em roupas chiques. São Paulo é a crítica do fracasso do capitalismo à brasileira. Debaixo do viaduto, mão estendida, farrapos a recobrir-lhe o corpo. São Paulo é inventiva. Encontrou um modo diferente de sair do buraco. Cavou uma cratera bem maior. São Paulo ama a si mesma. Ostenta uma felicidade melancolicamente negativa. Sorri quando não fica encalacrada na Rebouças ou na Faria Lima, quando não morre afogada no Anhangabaú, quando não dá de cara com o revólver no semáforo... São Paulo vive com a mala no bagageiro. São Paulo não resiste a um feriado. Mesmo no seu aniversário, São Paulo não hesita em pôr o pé na estrada. São Paulo foge de si mesma. São Paulo já não se agüenta."

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RAFA @ 18:32 tic-tac-tic-tac