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quinta-feira, março 15, 2007

ON A DAY LIKE TODAY

Shakespeare já avisava: Beware the ides of march. O décimo quinto dia do terceiro mês do calendário romano traz em si um agouro milenar e ainda inexplicável. Em 44 a.C., deu-se cabo a conspiração que assassinou o imperador Júlio César. E, exatos 17 anos atrás, nos idos de março de 1990, um jovem tirano brasileiro dava cabo à uma grande conspiração contra o povo do meu país.

Por decreto, o tal tirano mandava confiscar, de toda gente brasileira, todas as suadas economias, saldos bancários, ou quaisquer outros bens percebidos financeiramente que superassem a marca de 50 mil cruzeiros - algo em torno de mil reais, em valores de 2007. Na melhor das hipóteses, era uma medida extremíssima, um ato que desafiava a lógica de séculos de conhecimento econômico acumulado pela humanidade, para conter o demônio inflacionário que fez o Brasil perder toda a década de 80. Na pior - que penso eu, acabou por confirmar-se - foi o maior ato de roubo já aplicado nos cinco séculos de Brasil.

Se esse ato não fosse condenável pela extrema canalhice dolosa - demonstrada tempos depois - o seria do ponto de vista econômico e filosófico. Não sou economista, mas de uma coisa eu entendo: a inflação não é um problema de base monetária, e sim de seu fluxo. Portanto, o efeito de retirar recursos do mercado, mesmo em absurda quantidade, seria mínimo sobre as causas da inflação. Mas de que serve o conhecimento contra o voluntarismo hormonal adolescente?

Os efeitos sobre a sociedade foram indizíveis. Na minha casa eles foram significativos, e só sobrevivemos bem a eles porque nossa estrutura familiar era (e é) sólida como rocha. Lembro-me que tinha dez anos, meu pai havia acabado de ganhar uma justa indenização por uma de suas transferências, e ia quitar o apartamento que tinha comprado em 82. Acabou tendo que vender um carro para pagar as contas e as dívidas da mudança não-indenizada. Por todo lado se ouvia sobre divórcios, suicídios, brigas de toda a espécie, fome, todas precipitadas por uma precipitação de um governante e seus asseclas.

Aliás, os asseclas foram poupados da penúria, e aí está a raiz da canalhice. Todos foram devidamente avisados para sacar seus ativos antes do dia fatídico. E como em terra de cego que tem um olho é rei, todos eles ganharam poderes extraordinários da noite para o dia, pelo mero fato de terem dinheiro no bolso. Seriam a elite que defenderia o novo sistema da "renovação nacional", os escolhidos, o que chegava a ser uma honra. Lembro-me de uma colega que certa feita, numa festa, chegou a vangloriar-se do fato de que sua mãe, alta funcionária do Banco do Brasil, havia sido avisada e escapado ilesa ao turbilhão. Perdi totalmente a cabeça por uns trinta segundos, talvez um pouco mais. Disse-a algumas boas. Como acho que ela é de boa índole, deve lembrar das minhas palavras até hoje.

O plano aparentava ter dado certo, a inflação foi debelada por alguns meses, mas na verdade eram só os efeitos do choque. Focou no sintoma e esqueceu-se da causa. Como disse o Simonsen, era um remédio para febre que matava o paciente: com o paciente morto, não há mais febre, certo? O Congresso, subjugado, dava legitimidade jurídica aos atos. O PIB encolheu 12% em um ano, e a inflação voltou depressa e com mais voracidade. Em 92 a brincadeira acabou, e Collor foi defenestrado por uma conspiração parlamentar ajudada pelo clamor do povo nas ruas e dos meios de comunicação, que já não aguentavam mais tanto voluntarismo. Mas vários estragos já tinham sido feitos, alguns deles irreversíveis...

Hoje, nossos juros altos denunciam um país de caloteiros, um país que há 17 anos via seu povo ser assaltado por seu próprio governo. O mesmo Collor é senador, e seus asseclas vivem bem e em paz. Mas se tanto sofrimento não serviu de nada, é útil para mostrar a pessoas como eu que há limites para a ação do Estado em nome da coletividade, que a verdadeira coragem não é nada hormonal, e que atos inpensados quase sempre têm consequências nefastas para todos.

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RAFA @ 12:56 tic-tac-tic-tac