:: Raridades ::
terça-feira, maio 29, 2007

Na margem de cá


Há alguma coisa no ar
e nas vísceras.
Ao mesmo tempo, hiperventilo
e sinto a asma de existir.
O sopro primordial acumula-se
sai, vira vácuo, sufoca, agonia
e alivia no ar da manhã.

Há muita energia contida
nas vísceras.
O abdome contrai-se, retesa
antes flácido, agora pétreo
sente a tensão no fundo
mas protege-se do que vem de fora

O outro eu não cabe em mim, exige sair
ou tornar-se; eu mesmo, ou qualquer outra coisa.
Quer explodir, ou simplesmente devanescer
sólido a dissolver-se no ar.

Começo a sentir o casulo apodrecer
casca protetora que me prende,
e urge a vontade de quebrar o encanto
- ou de finalmente realizá-lo.
Será que sempre foi assim?

As flores de plástico não morrem
(mas também não vivem).
A ordem é inescapável.
Enquanto isso, o eu é moído, processado, enlatado
nas vísceras
a carniça renasce em flor, para morrer novamente
Goza, e dói. Soluça, desespera, e gargalha gostosamente

Meu delírio é a realidade
Meu dia-a-dia é aceitar a morte um pouco por dia
é entorpecer-me de água e ar como se ópio fosse
é sentir que somos um, identidade, indivíduo
mas nunca completos, portanto sozinhos.
É ser feliz insatisfeito. É sentir faltar o pedaço.
É o orgasmo seguido da vontade de morrer.

Conheço a marcha, vou tocando em frente
sem saber até quando.
Os comos e porquês não importam mais.
Amadureço apenas para enlouquecer, um dia por vez
Economizo para consumir orgiasticamente
Estabeleço-me para emigrar
Durmo para trabalhar
Vivo para morrer.


E também o contrário.





* * *




(A piora nos meus textos é fruto de uma confusão mental que me acomete há alguns meses. Tem melhorado um pouco, mas ainda está ruim. Expresso-me melhor quando tenho clareza dentro. Enxergo melhor quando há luz. Sou uma pessoa melhor quando estou em paz. Mesmo sabendo que segurar uma caneta é estar em guerra, sempre.
Pra compensar os últimos posts políticos, prometo postar amenidades - mesmo que elas não sejam tão amenas assim. Filme do Tarantino é assim mesmo, escrachado e sangrento.)

* * *

RAFA @ 11:24 tic-tac-tic-tac

segunda-feira, maio 28, 2007

Feliz Ano Novo!

Pois é, o título desse post é esse mesmo. Não, o Rafa não endoidou. Mas com a carga tributária brasileira beirando os 40% - e com a classe média pagando a maior parte da festa - o ano só começa agora pra todos nós.

Pensem em tudo que vocês fizeram desde o dia primeiro de janeiro. É coisa pra cacete, né? Em cinco meses, dá pra conhecer muita gente, começar e acabar namoros, escrever uma tese inteirinha. Se você trabalha, pense em todos os dias de expediente que você teve desde o início do ano. Acordando cedo, pegando condução, enfrentando engarrafamento, trabalhando horas a fio, chegando em casa cansado. Pois é meu caro, nada disso foi para você. Os frutos do seu suor não serão colhidos por você, nem por ninguém. Foram pro ralo.

Contando que você estará empregado até o fim do ano, todos os seus dias de trabalho até agora foram para pagar impostos e contribuições. E mesmo que você não esteja empregado, os está pagando. Os impostos são ubiquitous, estão em todos os lugares, embutidos no arroz, na gasolina, no remédio. Nem sabemos ao certo quanto estamos pagando a cada compra. Mas estão lá. As propostas para dar transparência à cobrança de impostos, particularmente aquelas de incluir nas etiquetas de preço a quantia exata, como acontece nos Estados Unidos, são sempre providencialmente barradas no Congresso. Por lá, sabem que se o povo tiver noção do quanto se paga, haverá revolta geral.

Frise-se: esses impostos supostamente financiariam serviços públicos dos mais diversos, serviços estes que não são prestados como deveriam, quando não são prestados at all. Ocorre então a dupla despesa, notadamente para a classe média: como o serviço de saúde público é ruim, paga-se um plano de saúde. Paga-se duas vezes o preço de ter um sistema mal-desenhado. Hoje no Brasil há serviços públicos de todos os tipos e tamanhos, a grande maioria deles de qualidade muito duvidosa e/ou custo operacional alto demais. E não há praticamente nenhum setor relevante na economia sem participação maciça do Estado.

Trata-se de 40% do capital de um país, imobilizado nas mãos de um governo e de uma constituição que propõe fazer dessa terra abençoada dos trópicos uma Suécia de bem-estar social, mas com gestão de recursos moçambicana. Nada contra nossos irmãos africanos. Mas a noção de Estado tupiniquim é essa mesmo, transfere a responsabilidade pelo nosso bem-estar a um ente abstrato, sem rosto, e que não pode ser alcançado. Decorre da imposição de uma visão de mundo, que tira da iniciativa das pessoas a realização da felicidade e do bem-estar. A culpa é sempre do sistema, do Estado, do FMI, da conjuntura internacional, do mundo... nunca é nossa.

E pensar que uma das condições materiais para a Inconfidência Mineira foi a insatisfação dos colonos com o Quinto, que como o nome diz, era um imposto de 20%. Hoje, pagamos o dobro, e estamos calados. Será que nosso sangue de colono irredento afinou? Onde estão Cláudio Manoel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga, Alvarenga Peixoto, onde está Tiradentes?!

* * *

Domingo. Enquanto no Brasil, eu assistia emocionado meu glorioso Botafogo entortar as pernas do menguinho, em Caracas um ditador mandava fechar uma emissora de TV, pelo simples fato de lhe fazer oposição. Dizem meus amigos mais entendidos de América Latina que a RCTV era a única coisa que prestava na panfletária televisão venezuelana. No lugar da RCTV, será transmitida a Teves, Televisão Venezuelana Social, mais um canal estatal.

De fato, a revolução não será televisionada... irônico, non? Ouçam o que eu digo, esse Chávez ainda vai nos dar problema. E eu sinceramente espero que nossa resposta não seja de subserviência, como foi com nosso colega Morales. Para Chavez, aquela famosa frase de Voltaire: posso não concordar com o que dizeis...

* * *

Camuflagem

foto de satélite, visão de raio X
cães farejadores, detectores de metal
currículo escolar, teste de QI
previsões do tempo no telejornal
não captarão... não captarão...

capas de revista, lista de "dez mais"
grampo telefônico, malha fina
a lei da selva e dos tribunais
leitura de mãos, regressão a outras vidas
não captarão... não captarão...

sem soar o alarme, sem fazer alarde
vai passar batido, despercebido
talvez até já tenha acontecido

sondas e radares não captarão
revisores ortográficos também não
pesquisa de opinião, câmera escondida
os caras ligados se atrasarão
não captarão... não captarão

sem soar o alarme, sem fazer alarde
sem bater na porta, sem mandar aviso
sem passar recibo, sem hora certa
vai passar batido, despercebido
talvez até já tenha acontecido

RAFA @ 12:16 tic-tac-tic-tac

quinta-feira, maio 10, 2007

Laïcité!

"Nesse terreno da racionalidade viceja com clareza a noção de que “não existe morte mais evitável” do que aquela resultante do aborto de risco, ou seja, quase a totalidade deles no Brasil, por conta da criminalização do procedimento. Aquilo que nesse campo se faz com segurança em hospitais e clínicas, com toda proteção à saúde da mulher, em suma, aquelas histórias que todas as mulheres com maior grau de escolaridade e renda mais alta por alguma via conhecem, constituem absoluta exceção. E fora desse círculo estrito, abundam os relatos das complicações surgidas, e das mortes daí decorrentes, por conta entre outros fatores das agulhas de tricô, dos talos de plantas e de toda espécie de hastes longas introduzidas no útero para interromper a gravidez da qual sua portadora por alguma razão imperiosa quer, precisa, desesperadamente precisa, se livrar.

Quantas são essas mortes que se poderia evitar no Brasil? Calcula-se conservadoramente que a morte materna no país vitima cerca de 2.300 mulheres por ano. Se aquelas resultantes das complicações do aborto de risco constituem de 15% a 20% desse total, elas se situariam entre 345 e 460 por ano. Mas a mortalidade materna no Brasil é absurdamente subnumerada, adverte Faúndes, gritam muitos outros pesquisadores e pesquisadoras e, em vez de se situar na faixa de 70 por 100 mil, estaria no patamar de 140 por 100 mil, apontam estudos recentes. Se chegaria então a algo entre 690 e 920 mortes evitáveis a cada ano. "


Vejam bem, gente. Não se trata de defender o direito ao aborto, e nem retirar os direitos do nascituro. Trata-se de regulamentar uma conduta que, feita desordenadamente e sem suporte, mata e continuará a matar.

* * *

RAFA @ 10:37 tic-tac-tic-tac