:: Raridades ::
sexta-feira, junho 22, 2007

Ars Celare Artem

E eis que por vezes acho que tenho uma alma artista preso a um corpo irremediavelmente burguês. Pois sempre digo a mim mesmo, podem ter meu tempo e meu suor, mas não colonizarão minha cachola, jamás. Prefiro a aparente mediocridade de um carro velho e uma casa modesta a uma estante sem livros e uma vida sem novas idéias. A parte intangível do meu ser é enorme, simplesmente grande demais para esses parcos compartimentos de consumo e de "sucesso". Houve tempos em que, sem perceber, vi os muros dessa mentalidade erguerem-se em volta de mim, mas a matéria desses tijolos era frágil perto dos vários sóis que uma mente humana pode gerar. Houve um tempo em que vivi quase sem arte, sem parágrafos e páginas, sem novas sinapses. Estava preso. Via meu ser desvanecer-se, e ser ocupado por uma matéria escura e fria de vícios, medos, ciúmes, tristeza, inação. Viver sem arte foi ver minha própria alma morrer mais rápido que o corpo.

Mas às vezes há a vontade de explodir em um gozo fértil e criativo. Apoteose, epifania, euforia, eurekas, um pouco de cada. É raro, e por isso mesmo tão precioso. E quando acontece, há momentos em que sou tomado por um desconforto enorme, por não ter um canal privilegiado para a expressão do que me passa. E se o meio é a mensagem, fico numa encruzilhada multimídia, como um jack of all trades, but master of none. Acho que canto razoavelmente bem, tiro boas fotos, tenho alguma habilidade com instrumentos musicais - mas não a disciplina para aprendê-los de fato. O róque é o amor antigo, o samba e o maracatu são as novas paixões. Talvez o canal mais desenvolvido seja o da palavra escrita: as crônicas são a válvula mais orgânica e natural para dar vazão aos pensamentos, e ocasionalmente uns poemetes concretistas sem métrica dão cabo de uma emoção mais epidérmica. Mas mesmo quando não estou a praticar alguma arte no sentido formal, tento exercer a arte da metáfora nos meus diálogos cotidianos. É a presença de espírito, o wit, que tanto gosto. Para manter as sinapses rápidas e em forma.

Nos meus arroubos de criatividade noturna, tento espremer a quintessência do momento e do que estou sentido em uma linha, uma frase, uma palavra. Sintetizar é tudo. Em tempos de attention spams cada vez mais curtos, comunicar a Arte é dar às pessoas instantâneos com referenciais imediatos, ou mesmo nenhum referencial necessário para compreender o que se diz. Nietzsche e Hobsbawm falavam sobre a Arte de seus tempos, o meio de expressão do zeitgeist. E se os anos noventa foram de curtas, videoclipes e comerciais publicitários, a contemporaneidade é do VocêTubo, da web 2.0 e dos blogs. São pessoas comuns, heróis anônimos que têm tudo a dizer, nem que seja um sonoro "vai tomar no cu" a um vizinho na voz do Bob Dylan. É a arte-transpiração, fresca e autêntica, fora da bolha de mercado e de falsos gênios. São gente de verdade, como eu e você, nas mentes de milhares de pessoas.

Neste exato momento, há milhões de anônimos amadores no mundo interagindo de forma artística, compartilhando impressões únicas, às vezes até sem querer. Vejo o artista profissional como uma categoria que desvanece dia-a-dia pelas novas possibilidades técnicas que nos trazem o tempo presente. Estamos todos fartos dos semideuses artistas, esta casta de privilegiados, que nem sempre criam nem agregam nada de valor ao patrimônio cultural humano. Em 95, Noel já prometia começar uma revolução de sua cama. Hoje, mais do que nunca, isso é uma possibilidade real.

E assim as idéias seguirão, mais livres e naturais, e com cada vez menos intermediários. Meio e mensagem serão cada vez mais orgânicos, e o fluxo será como inspirar e expirar. Consumir arte, para alimentar o sistema com mais arte. Anonimamente. Autenticamente.

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Enquanto isso, na sala de justiça... um pobre rapaz latino-americano percebe-se em perspectiva. Primeiro, como chuva, depois como poça, e logo como água corrente. Ser ribeirão ou rio é sinuoso e agoniante, antecipa um porvir: uma vontade de tornar-se a paz de um lago, ou a imensidão de um mar. Cuando uno tiene sed, pero el agua no está cerca...

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RAFA @ 18:59 tic-tac-tic-tac